Thursday, January 27, 2005

"Dante's Inferno seems to me almost a comedy compared to this."
from the diary of SS Dr. Johann Kremer, Sep. 2, 1942




Oświęcim, é o nome polaco da pequena cidade. Tem pouco mais de 40 mil habitantes e fica a 75 km de Cracóvia. Uma hora de autocarro, mais ou menos. Os alemães chamaram-lhe Auschwitz. Ali construíram o primeiro e o maior dos campos de concentração. Ali mataram mais de um milhão de homens, mulheres e crianças, da forma mais eficiente que puderam. Ali estive eu há seis anos atrás, em silêncio, a tentar perceber tudo aquilo. Não consegui. Vi milhares de fotografias, de rostos que me olhavam de frente sem expressão, vazios de esperança e de sentimentos. Vi salas cheias de cabelos e de botas, de malas com a cruz de David e um apelido escrito a giz. Vi colheres, vi tigelas. Uma delas igualzinha à que existe em casa da minha avó. Igual. Vi as câmaras de gás, os fornos crematórios. Vi o "Muro da Morte". Desci às celas do Bloco 11, das quais tão cedo não vou esquecer o cheiro. Atingiu-me com um arrepio de frio. Vi as paredes riscadas com as unhas, onde contavam os dias, onde escreviam preces. Senti o medo. Em Birkenau olhei incrédulo para uma foto a preto e branco tirada precisamente no sítio onde eu me encontrava, em frente à linha de comboio. Há cinquenta e cinco anos atrás, a dois metros à minha direita, uma criança olhava para alguém que estava na outra fila e esticava a mão, pela última vez. Ali separavam os que iam morrer dos que iam trabalhar até morrer. Uns iam para a fila da direita, os outros para a esquerda. Ali mesmo, onde eu estava, e tudo aquilo me parecia irreal. "Como é isto possível?" Entrei nas cabanas onde dormiam os prisioneiros, wassertrinker verboten escrito em letras militares nas paredes. Entrei na cabana onde Mengele fazia as suas infames experiências. Vi os fornos dinamitados pelos alemães em fuga. Vi tudo. Em silêncio. A tentar perceber o injustificável.
Auschwitz foi libertada há sessenta anos atrás, neste preciso dia, pelas tropas soviéticas. Há quem não saiba tudo isto, há quem ache que não lhe diz respeito, há quem negue até que tenha acontecido assim. Aconteceu. No dia em que esquecermos Auschwitz, estaremos condenados a deixar que aconteça outra vez.

Wednesday, January 26, 2005

A "vaga de frio polar"

Janeiro, duas semanas atrás...
"- Privet N. So you're back...
- Privet Rino. Yes, back to nice portuguese weather!
- What do you mean, nice? It's eight degrees this morning! It's freezing...
- No. In Russia it was freezing. Here is nice and warm.
- Eight degrees is not nice and warm...
- Rino, it's eight degrees above zero. In Russia it was twenty bellow zero. Believe me, it's nice and warm."

Janeiro, ontem...
"- Good morning, N.
- Hi Rino. Really cold today, ahn?
- Seven degrees, I just heard on the radio. It's normal, I guess...
- I think it's really cold. I saw people on TV warning about cold...
- What happened to the "nice portuguese weather"? It's not colder than two weeks ago...
- I feel cold. They are warning about cold... maybe I didn't choose the right clothing..."

Janeiro, hoje. Nada mudou. Não vou ver as notícias logo à noite, mas aposto que pelo menos um canal vai ter um jornalista a acompanhar aquela que será a "noite mais fria" desta "vaga de frio polar". Em directo, claro, à espera provavelmente de um congelamento rápido como o que viu neste filme. Trancadas dentro de casa, com todos os aquecedores que foram comprados à pressa nos últimos dias e com o comando de TV na mão, famílias inteiras vão ver as imagens do frio que assola toda a Europa... menos nós. Não interessa. Se eles têm uma vaga de frio, nós também. Só pode ser isto a globalização, que nunca o mundo foi tão pequeno. Tem o tamanho de um ecrã de televisão.

Sunday, January 23, 2005

Holga

"Esqueci-me! Esqueci-me da máquina fotográfica! Eihh..." Alfama, a caminho de uma tasca, que o homem fez anos. "Como assim, também te esqueceste? Mas ninguém trouxe uma máquina fotográfica?" Não. Vinte pessoas, entre as quais quatro bloggers e ninguém se tinha lembrado. O único que tinha a casa ali ao cimo da rua teima em tirar fotografias com o telemóvel, é uma complicação para as tirar de lá. "Bom... não faz mal, uso uma antiga para o blog." Um post sem fotos não é a mesma coisa, e aquele eléctrico passa ali todas as noites. Puro acaso, não ter sido tirada ontem, só porque ninguém tinha uma máquina à mão. Ou quase... "Bem... eu trouxe a Holga...". A Holga podia perfeitamente ter sido vendida pelo indiano das flores que apareceu a meio do jantar, ou comprada numa loja dos trezentos. Era tão leve que parecia um brinquedo, uma máquina a fingir. "Mas isto funciona? Onde é que eu carrego para tirar uma foto?" Carrega-se num pequeno botão, ao lado da objectiva, o ruído é quase imperceptível. Depois tem de se rodar o filme com muito cuidado, que ele não pára sozinho. É preciso olhar para uns números pretos numa fita encarnada para perceber quando está pronta a disparar outra vez. "Quanto é que tu deste por isto? Mas tu és doido?" É. "Mandei vir pela net. Vinte e cinco euros." Fico seriamente preocupado quando vejo amigos meus a percorrerem o caminho da loucura, da completa insanidade mental. Preparava-me para lhe bater com a máquina na cabeça, ou em alternativa vender-lhe uma data de inutilidades que tenho lá em casa, quando ouço o aniversariante do outro lado da mesa. "Eh pá, teve azar, o gajo. Essas máquinas são feitas à mão, mas a dele saiu bem, é estanque..." Estou definitivamente rodeado de loucos. "Ahn?" Era verdade. A Holga, ao que parece, é feita pelos mesmos tipos que vendem a Lomo. É feita à mão, em material de fraca qualidade e acaba quase sempre por sair defeituosa. Basta uma folga, ou uma pequena abertura, e a luz entra na câmara que devia ser estanque, manchando o filme fotográfico e criando efeitos de luz estranhos na fotografia. Um sucesso, que o resultado é único para cada máquina. Menos aquela. Aquela saiu perfeita. "Deixa ver se eu percebo. Deste cinco contos por uma máquina de plástico e estás chateado porque ela funciona bem?". "Sim..." Não me ocorreu na altura, mas apercebo-me agora que se lhe tivesse batido com a máquina na cabeça, ele se calhar ficava com o problema resolvido...

Friday, January 21, 2005

Um contra todos

"The king was impressed, and grandly declared that he would pay the mathematician the largest amount that the latter could name. The poor mathematician was not just clever but also keen to shatter the king's pride. He said, "Put one gold coin on the first square of a chess board, double that for the second square, double of the second square on the third square, and so on till the 64th square. I want twice the amount on the 63rd square. That is the biggest number I know."

"- Cinema. Fácil? Outra vez fácil? Isto assim não tem piada nenhuma. Este gajo é um ignorante!
- Qual destas actrizes... participou no filme Annie Hall... do Woody Allen... é a Diane Keaton, claro!
- Mas ele não sabe, de certeza. Pois não, olha para ele já em pânico. É burro pá! O jogo todo a pedir perguntas fáceis. Venha outro!
- Agora vem ela para o lugar dele, se acertar... Acertou, fixe. Vamos ver uma mulher a jogar!
- Fácil? Ela quer uma pergunta fácil? Mas porque é que pedem sempre perguntas fáceis? Isto irrita-me...
- É a primeira pergunta... é sempre assim.
- Mas porquê? Quais são as regras disto? Eles ganham mais à medida que o número da pergunta aumenta?
- Não, o que ganham é sempre igual ao que já têm, multiplicado pelo número de concorrentes que erram...
- E é indiferente se a pergunta é fácil ou difícil...
- Então... então qual será a melhor estratégia? Pedir perguntas difíceis ao início e depois fáceis quando já houver poucos, ou o contrário?
- Primeiro as fáceis pá! Quanto menos fores eliminando, melhor, porque depois multiplicas mais vezes.
- Ahn?
- Deixa-me pensar. Imagina que eliminas logo todos. Ficas com 50 vezes... começas com quanto?
- Duzentos e cinquenta euros.
- Aliás, o melhor até é eliminares um a um...
- Um a um? Ora isso assim... em cada pergunta ficas com...
- Uma exponencial, isso é uma exponencial!
- Não é nada exponencial nenhuma, pá. Deixa-me ir ali fazer umas contas... E não sei se é melhor um a um. Não ganharás mais se lá para o final eliminares mais do que um?
- Não, pá! Não! Vocês os dois! Uma matemática e um físico e tenho de ser eu a fazer as contas? Sou eu contra todos?
- Espera aí, deixa-me pensar melhor... isso não vai dar uma progressão?
- É isso, é isso! Ele afinal tem razão! É uma progressão geométrica. Eliminando um a um vais sempre somando o valor que já tens. Em cada jogada ficas com o dobro do que tinhas... É a história do matemático e do tabuleiro de xadrez!
- Qual tabuleiro de xadrez?
- Pois... bem me parecia que era uma progressão... Ao fim de n jogadas ficas com...
- Ficas com dois elevado a n, vezes os duzentos e cinquenta, a dividir por dois... Ficas com dois elevado a n menos um, a multiplicar pelos duzentos e cinquenta...
- Então o melhor é mesmo fazer só perguntas fáceis, vês? E dizias tu que ele era ignorante...
- É. Para eliminar o menor número de gajos de cada vez, o melhor é só fazer perguntas fáceis...
- Eihhh... Isso assim não tem piada nenhuma...

"The king laughed uproariously. A small sack of gold coins was brought in, and the counting began. The whole court was laughing by the time the coins reached the sixth square, for there were just 32. But by the 11th square, the little sack was depleted. A larger one was brought in. By the 12th square, the chessboard had to be abandoned, and the piles of coins kept on the floor, for the number had grown to 2,048. By the 25th square, the amount was 16,777,216 gold coins. Nobody was laughing any more. By the 37th square (68,719,476,736 gold coins), the king's coffers were empty. And 27 squares still remained..."

Friday, January 14, 2005

Admouere oculis distantia sidera nostris...

13 de Junho de 1655. Christiaan Huygens escreve a J. Wallis, professor em Oxford, comunicando-lhe uma descoberta feita com o seu novo telescópio. O anúncio aparece no final da carta, sob a forma de um anagrama: Admouere oculis distantia sidera nostris, uuuuuu cccrrhnbqx. Uma mensagem em código, uma precaução muito comum dos astrónomos naquela altura, depois do que aconteceu com Galileu. Descodificado, diz o seguinte, em latim: Saturno luna sua circunducitur diebus sexdecim horis quatuor. "A lua de Saturno gira em seu redor em 16 dias e 4 horas". Tinha sido descoberta Titã, como lhe chamaram duzentos anos mais tarde, em honra dos velhos deuses gregos. A maior das luas de Saturno.

Hoje. Sessenta e sete minutos, é o tempo que demora a informação transmitida pela sonda Cassini a chegar até nós. Cassini orbita Titã, a seis mil quilómetros de altitude. Mas é apenas uma intermediária. A sua companheira, a sonda Huygens, mergulha na atmosfera de Titã a mais de vinte mil quilómetros por hora. Quer pousar, tocar a superfície gelada da lua de Saturno. Se tudo correr bem, nunca teremos tocado tão longe. "Já abriu o paraquedas. Já disse: estou aqui" Em directo de Darmstadt, centro de controlo da Agência Espacial Europeia, o Abrupto adianta-se à CNN e confirma a recepção dos primeiros dados. "Palmas. Começou a chegar. Viva!" Rejubilo também eu, incapaz de me afastar do monitor do computador. A mil e trezentos milhões de quilómetros da Terra, Huygens prepara-se para enviar mais dados. Tem bateria para sete horas, consegue tirar fotografias e registar sons, detectar trovoadas, medir a temperatura, a velocidade do vento, a composição química da atmosfera... Uma atmosfera que terá sido parecida com a da Terra, nos primórdios. Antes do aparecimento da vida. Agora é aguardar...

Thursday, January 06, 2005

Os vizinhos

"Bom dia, está bom? Também vai para baixo?" Cumprimento-o também. Digo que sim, claro, enquanto seguro a porta do elevador. Para cima era impossível, que o nosso andar é o último do prédio. "Terceiro andar", digo para mim próprio, enquanto carrego no botão do rés-do-chão. "Começa quando chegarmos ao terceiro andar..." Enganei-me. Ainda não tínhamos chegado bem ao quarto andar quando ele dispara de rajada. "Vou agora depositar os cheques. Depois passo tudo para si. Vai ser você o próximo administrador." Acredito em tudo àquela hora da manhã. "Ah sim? Ok, tudo bem, sou eu o próximo administrador..." Mal acabo de o dizer, vem-me à memória o governador de Bagdad, assassinado pelas milícias de Al Zarqawi, e Yushenko, desfigurado por envenenamento com dioxinas. Chegará inevitavelmente o dia em que o condomínio daquele prédio será administrado por uma força de manutenção de paz, uma empresa privada. Até lá, a luta pelo poder é intensa. E é preciso ter muito cuidado com as alianças que se fazem. "Depois há umas coisas que tenho de lhe contar, mas isso fica só aqui entre nós", diz enquanto se afasta da porta, que estamos a passar pelo terceiro andar. Há quatro anos atrás, um tapete caiu do estendal do último andar para o quintal do prédio, desaparecendo poucas horas depois. Retaliação ou provocação, o certo é que o incidente provocou uma espiral de vinganças, uma autêntica vendetta siciliana que já terá causado, alegadamente, um ataque cardíaco a um dos beligerantes. E isso foi antes do grande cisma do arranjo do elevador, onde também eu fiquei preso e do qual só saí jurando eterno segredo sobre a localização de uma das chaves de emergência. E das obras no prédio, o equivalente a três meses de Vietname. No placard de entrada do prédio sobrevive ainda propaganda de guerra dessa altura, uma mensagem enigmática escrita à mão numa folha de caderno, que nunca me dei ao trabalho de decifrar. "Três anos! Já administro isto há três anos! Sabe lá você do que tem sido a minha vida com estas, com estas..." Rés-do-chão. Abro a porta do elevador e ele cala-se automaticamente, talvez por instinto. Saímos os dois em silêncio, cumprimentando-nos à saída do prédio sem dizer palavra. Ele virou para a direita, eu para a esquerda, e assim seguimos por caminhos diferentes, como se de um encontro de espiões se tratasse. Desconfio que ainda antes do final do dia vou ser contactado por algum representante da outra facção...

Tuesday, January 04, 2005

Gondramaz


"Darkness. Distant sounds of freeway traffic. Then the closer sound of a car - its headlights illumine an oleander bush and the limbs of an Eucalyptus tree. Then the headlights turn - a street sign is suddenly brightly lit. (...) The car moves under the sign as it turns and the words fall once again into darkness. There is no one else on the road." [I]


"It was a fine apartment in which we found ourselves, large, lofty, and heavily raftered with huge baulks of age-blackened oak. In the great old-fashioned fireplace a log-fire crackled and snapped. "It's just as I imagined it," said Sir Henry. "Is it not the very picture of an old family home? (...) As Sir Henry and I sat at breakfast the sunlight flooded in through the high mullioned windows..." [II]


"Out of doors, with fish and oatmeal resting heavy on my gut and breath like smoke upon the frozen air, I walk beside the bailiff neath a gauze of shadow down the steep lanes slippery with frost. The sky is ribboned water-blue and gold along its eastern edge, where West of that there are yet stars and from the fields outside comes a gradual fugue of birdsong, each voice lucid and distinct." [III]


[I] Mulholland Drive script
[I] Arthur Conan Doyle, The Hound of the Baskervilles
[III] Alan Moore, The Voice of the Fire (Angel Language tale, AD 1618)



"- O champanhe! Tragam o champanhe cá para fora!
- Mas que horas são? Já passa da meia-noite ou não?
- Não vejo nada cá fora... Alguém tem aí um telemóvel?
- Tenho dois, num já passa da meia-noite, no outro não.
- Acho que ouço foguetes, lá ao longe!
- Será que já passa da meia-noite?
- Não interessa... Somos os únicos aqui, por isso decidimos nós. Bom ano!!!
- Ahhh!!! Não! Champanhe para cima de mim não!!
- 2005! Bom ano para todos!"