Thursday, January 06, 2005

Os vizinhos

"Bom dia, está bom? Também vai para baixo?" Cumprimento-o também. Digo que sim, claro, enquanto seguro a porta do elevador. Para cima era impossível, que o nosso andar é o último do prédio. "Terceiro andar", digo para mim próprio, enquanto carrego no botão do rés-do-chão. "Começa quando chegarmos ao terceiro andar..." Enganei-me. Ainda não tínhamos chegado bem ao quarto andar quando ele dispara de rajada. "Vou agora depositar os cheques. Depois passo tudo para si. Vai ser você o próximo administrador." Acredito em tudo àquela hora da manhã. "Ah sim? Ok, tudo bem, sou eu o próximo administrador..." Mal acabo de o dizer, vem-me à memória o governador de Bagdad, assassinado pelas milícias de Al Zarqawi, e Yushenko, desfigurado por envenenamento com dioxinas. Chegará inevitavelmente o dia em que o condomínio daquele prédio será administrado por uma força de manutenção de paz, uma empresa privada. Até lá, a luta pelo poder é intensa. E é preciso ter muito cuidado com as alianças que se fazem. "Depois há umas coisas que tenho de lhe contar, mas isso fica só aqui entre nós", diz enquanto se afasta da porta, que estamos a passar pelo terceiro andar. Há quatro anos atrás, um tapete caiu do estendal do último andar para o quintal do prédio, desaparecendo poucas horas depois. Retaliação ou provocação, o certo é que o incidente provocou uma espiral de vinganças, uma autêntica vendetta siciliana que já terá causado, alegadamente, um ataque cardíaco a um dos beligerantes. E isso foi antes do grande cisma do arranjo do elevador, onde também eu fiquei preso e do qual só saí jurando eterno segredo sobre a localização de uma das chaves de emergência. E das obras no prédio, o equivalente a três meses de Vietname. No placard de entrada do prédio sobrevive ainda propaganda de guerra dessa altura, uma mensagem enigmática escrita à mão numa folha de caderno, que nunca me dei ao trabalho de decifrar. "Três anos! Já administro isto há três anos! Sabe lá você do que tem sido a minha vida com estas, com estas..." Rés-do-chão. Abro a porta do elevador e ele cala-se automaticamente, talvez por instinto. Saímos os dois em silêncio, cumprimentando-nos à saída do prédio sem dizer palavra. Ele virou para a direita, eu para a esquerda, e assim seguimos por caminhos diferentes, como se de um encontro de espiões se tratasse. Desconfio que ainda antes do final do dia vou ser contactado por algum representante da outra facção...

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