Saturday, February 19, 2005

Em reflexão...


Depois do jantar comício em grande, a viagem até Leiria. Amanhã voto na cidade onde nasci...

Wednesday, February 16, 2005

Quioto

Olho para dentro do Minipreço, do outro lado da rua, e conto pelo menos seis. Quatro senhoras idosas e dois homens. Todos com pequenos papéis na mão, em fila indiana à frente do quiosque dos jornais. Pelo menos dez, quinze minutos até todos eles verificarem se ganharam alguma coisa para logo a seguir, é certinho, gastarem o dinheiro todo a comprar mais uma dezena de totolotos, totobolas, lotarias, raspadinhas e qualquer coisa de euro-milhões. Olho para a direita. Mais à frente na rua, o condutor de um opel corsa azul discute de braços abertos com o "Bigodes", o polícia que quando não está na tasca do Sr. Silva, ali na esquina, se entretém a multar os carros em segunda fila. Oito ou nove pessoas assistem à discussão, de pé, no passeio. Quando lá chegar já a rua estará bloqueada, não vale a pena tentar chegar ao quiosque ao lado do restaurante do Sr. Manuel. Viro à esquerda, passo ao lado do Mercado, sigo em direcção à Alameda. Entro no quiosque da família indiana, quase ao fundo da rua, para sair logo a seguir, mal vejo a pilha de bilhetes de lotaria que um senhor baixinho de óculos e camisa branca entrega a tremer ao senhor indiano mais velho. O mais novo não está, ia demorar também uns bons minutos até conseguir o meu jornal. Atravesso a Almirante Reis, mas o quiosque em frente ao antigo Cinema Império já não tem o Público. Continuo, obstinado. Do outro lado da Alameda, em frente ao banco Totta, consigo finalmente comprar o jornal. Ainda assim tive de acelerar o passo para passar à frente de um senhora com um ar suspeito. Tinha de certeza a mala cheia de raspadinhas para trocar. O jornal debaixo do braço, o Metro logo ali ao lado, o carro estacionado na rua que pode até já estar cortada ao trânsito, se o "Bigodes" tiver chamado reforços...

Parece que entra hoje em vigor o Protocolo de Quioto. Quase toda a gente, com a excepção de quem mais contribui para o problema, compromete-se a partir de hoje a poluir menos, para combater as alterações climáticas. Acho bem, apesar de suspeitar que o nosso esforço de pouco vale quando quem mais polui vira a cara para o lado. Ainda assim, hoje, eu vim de Metro para o trabalho! Devo dizer que é bastante mais fácil ler o jornal calmamente sentado na carruagem do Metro do que tentar ler qualquer coisa enquanto espero que o semáforo fique verde...

Tuesday, February 15, 2005



Na cave encontrámos finalmente a maior parte da sua obra. Centenas de cadernos com números na lombada, folhas soltas, guardanapos também. Escrevia em todo o lado, por razão nenhuma que não a de estar sempre a escrever. Nada de muito original, disseram-lhe uma vez. "A originalidade é uma qualidade largamente sobrevalorizada", respondeu ele sem parar de escrever. "Tenho de resto a certeza que isto já foi dito por alguém". Esta e outras conversas anotou ele na página doze do caderno vinte e oito. No início escrevia ainda pouco, por vezes apenas algumas frases curtas, nada de muito detalhado. Escrevia desconfiado. Custava-lhe acima de tudo acreditar que certos acontecimentos tinham ocorrido exactamente como ele os escrevera meses antes, às vezes mesmo na véspera de sucederem. Não todos, apenas alguns. Pura coincidência, assegurou-lhe uma vez um idoso numa paragem de autocarro: "É extraordinariamente provável a ocorrência conjunta de dois factos improváveis. O que seria da Astrologia sem a nossa presunção de que as coincidências não existem?" Este episódio, de resto, marcou-o bastante, e terá sido decisivo no que se seguiu. Principalmente porque ocorrera quase da forma que ele o tinha descrito duas semanas antes. Incrédulo, desorientado, refugia-se em casa e escreve, escreve quase sem parar. Vive obcecado não com a ideia de falhar uma previsão, mas sim de acertar em todas, mais cedo ou mais tarde. Sabe que isso não é possível. Sabe que isso não pode ser possível. Escreve então de forma metódica sobre centenas de acontecimentos, de lugares, de pessoas. Escreve centenas de hipotéticas previsões, sempre com o cuidado de introduzir subtis contradições entre elas. Quer ter a certeza de poder anular uma com a ocorrência de outra, quer ter uma prova matemática infalível. Um dia deixou de escrever. Desapareceu por completo, talvez para esquecer tudo aquilo, talvez para não enlouquecer. Todo o seu método não terá sido despropositado. Ao escrever centenas de desfechos possíveis para a sua história, terá sem dúvida acertado num deles. Pode até ser este que leio agora, em que ele regressa um dia para destruir tudo, mas isso seria talvez uma coincidência grande demais. Não me recordo sequer de ter vivido nesta casa...

Friday, February 11, 2005

Os jogadores

"Isto é como se fosse uma batalha medieval, percebes? Os peões são os teus soldados." Aprende-se a jogar xadrez na mesa do lado, num tabuleiro rodeado de imperiais e tremoços. Três homens de farto bigode. Um deles, o que ensina, está de pé. Com a mão esquerda segura o copo, com a direita aponta para as peças no tabuleiro: "As torres são os castelos, vês aqui os cavaleiros? Tu tens é de cercar o rei do gajo! Quando ele não puder fugir é xeque-mate, percebes?" Diz que sim, que percebeu. Avança um peão, a medo. Um dos cavaleiros está ali mesmo ao lado, imponente na sua armadura que ele imagina prateada. Olha para o rei do adversário enquanto mexe no bigode. Já perdeu os bispos mas isso não lhe parece meter muita confusão. Um bispo não deve ter grande valor num campo de batalha. Um canhão aqui é que dava jeito, estilhaçava logo aquelas torres ao lado do rei, agora um bispo... Vêm mais duas imperiais para a nossa mesa, temos de afastar as folhas com rabiscos de DNAs e de membranas nucleares para haver espaço para os copos. Na televisão, um jogo de futebol em repetição, quase tão antigo como a música que se ouve agora mais alto e que abafa o som do peão enquanto ele é atropelado pelo impiedoso cavaleiro de armadura prateada. "Pronto, já chega de Biologia. Vamos a um snooker?". O dono do bar abana a cabeça, diz-nos que não. Alguém ocupou a nossa mesa lá em cima, hoje não há jogo. Combinamos para a próxima, para depois do exame. Olho para o relógio. Duas da manhã, vamos embora. À saída do bar, empurrando a porta que custa a abrir, ouço ainda o "xeque-mate!" vindo de lá de dentro. Não encontramos ninguém na rua. Alfama está deserta àquela hora...

Tuesday, February 08, 2005

Gertrude

"La velocità è il segreto. Velocità e tempo. Vedi? Sono tutti verdi..." Virava à esquerda, depois à direita, todos os semáforos pareciam obedecer a um comando à distância escondido ao lado do volante. Sorria enquanto via mais um a mudar de cor, muito antes de lá chegarmos. Não precisava sequer de travar. Sorria como se tivesse resolvido um puzzle, que compunha agora à nossa frente juntando as peças de olhos fechados. Demorámos quinze, talvez vinte minutos. Atravessámos Genova quase de uma ponta à outra, de casa dele até à casa da filha, onde íamos passar a noite. Não apanhámos um único sinal vermelho. À chegada, com a mesma calma com que me tinha ganho um jogo de xadrez poucas horas antes, parou o carro e segredou: "La velocitá è tutto..."

Ultrapasso o taxi, fico atrás de um Audi azul. Vai devagar. Demasiado devagar. Vejo-o a olhar para o espelho, a controlar a distância a que estou. Acelera agora inesperadamente, mal vê o semáforo ficar laranja. Persegue-o um outro taxista, que algumas ruas à frente me vai obrigar a parar para deixar sair um cliente, carregado de malas. Já desisti há algum tempo. Um dia talvez consiga repetir o feito do nosso anfitrião em Genova, há seis anos atrás. Sair de casa, pegar no carro e fazer todo um percurso em Lisboa sem apanhar um único semáforo vermelho. Mas terá sido obra do acaso, certamente, porque aqui não há método que funcione. Confiei durante algum tempo no Gertrude, o sistema informático que controla os semáforos nas avenidas principais. Olhava para o pavimento à procura dos rectângulos metálicos, escolhia as ruas, procurava um método. Soava-me a alemão, o nome, teria de haver forçosamente um método. Uma vez, é verdade, consegui ir de Campolide até à Estefânia sem parar. Mas lá estava um camião do lixo à minha espera quando faltavam ainda quatro semáforos para a Alameda. Nada a fazer. Gertrude é afinal um acrónimo em francês. Genova não tem os condutores de Lisboa. Às vezes um deles é suficiente. Actua sozinho, certamente. Mas as outras... As outras só podem ser o resultado de um trabalho de equipa impiedoso, invisível para a maioria, quase perfeito na forma de actuar. Tenho a firme convicção de ter visto o taxista que ultrapassei hoje a comunicar por rádio o sucedido. Foi quando o outro taxi acelerou, perseguindo o Audi, parando depois poucos metros à frente para deixar sair o cliente. As malas, claro, deviam estar vazias...