Estava atrasado, mas era hoje o primeiro teste. Desta vez não ia buzinar até aparecer alguém, este carro já o tinha visto antes, só preciso de me concentrar. O Sr. Santos do café?
A noite já estava perto do final, pelo menos para mim que tinha de trabalhar no dia seguinte. Num bar que agora já não é o Divino, no Bairro Alto, a conversa tinha sido orwelliana. Em quantas bases de dados existo eu, existimos nós? O que sabem Eles de mim e dos meus hábitos? Saberão Eles o que eu vou querer comprar amanhã, ou daqui a 10 anos? Pior do que ser catalogado, do que ter um código de barras, é ter o código de barras errado... Tinha por isso decidido ajudá-los, responder a todos os formulários, contar tudo, receber apenas a publicidade que me estava destinada. "O ideal" - dizia eu - "era entrar numa livraria e ser logo conduzido à minha secção, longe do Paulo Coelho e da Rebelo Pinto... era entrar neste taxi e ser conduzido ao Lux, sem ser preciso dizer nada..."
A realidade surpreende-nos quando menos esperamos. Entrámos no taxi e, antes mesmo de eu ter falado, perguntou-me o taxista "Vai para a Praça do Chile, não é?"
O Sr. Santos tem um parecido mas é vermelho. O homem do talho nº 29, no mercado, tem um cinzento como este mas costuma deixar um bilhete. O Sr. Manuel do restaurante?
Foi assim, dentro um taxi, há mais de um ano atrás, que eu descobri que não conhecia nenhum dos meus vizinhos, excepto talvez o homem que me vende o Público todos os dias, já há 6 anos. O taxista conhecia-me perfeitamente. "Eu sou irmão do Manel! Sabe pois, o do restaurante. A minha cunhada tem também a Pastelaria na esquina, nunca lá foi? Pois eu costumo vê-lo é no restaurante, você mora no prédio em frente ao Minipreço, não é?". Era. Não foi preciso dar indicações. Senti-me envergonhado por não fazer a mínima ideia de quem era aquela gente que me via todos os dias. Resolvi fazer a minha própria base de dados...
Não, não é o Sr. Manuel porque ele hoje trouxe a carrinha branca que está ali em frente à loja russa... Concentra-te...
O carro era do Sr. Vitor, que vende frangos assados no mercado. Pediu desculpa, mas como hoje era quinta-feira, ele pensava que eu não tirava dali o carro. "À quinta você nunca tira o carro durante o dia..." Pois, às quintas costuma de facto ser assim...
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