Tuesday, February 15, 2005



Na cave encontrámos finalmente a maior parte da sua obra. Centenas de cadernos com números na lombada, folhas soltas, guardanapos também. Escrevia em todo o lado, por razão nenhuma que não a de estar sempre a escrever. Nada de muito original, disseram-lhe uma vez. "A originalidade é uma qualidade largamente sobrevalorizada", respondeu ele sem parar de escrever. "Tenho de resto a certeza que isto já foi dito por alguém". Esta e outras conversas anotou ele na página doze do caderno vinte e oito. No início escrevia ainda pouco, por vezes apenas algumas frases curtas, nada de muito detalhado. Escrevia desconfiado. Custava-lhe acima de tudo acreditar que certos acontecimentos tinham ocorrido exactamente como ele os escrevera meses antes, às vezes mesmo na véspera de sucederem. Não todos, apenas alguns. Pura coincidência, assegurou-lhe uma vez um idoso numa paragem de autocarro: "É extraordinariamente provável a ocorrência conjunta de dois factos improváveis. O que seria da Astrologia sem a nossa presunção de que as coincidências não existem?" Este episódio, de resto, marcou-o bastante, e terá sido decisivo no que se seguiu. Principalmente porque ocorrera quase da forma que ele o tinha descrito duas semanas antes. Incrédulo, desorientado, refugia-se em casa e escreve, escreve quase sem parar. Vive obcecado não com a ideia de falhar uma previsão, mas sim de acertar em todas, mais cedo ou mais tarde. Sabe que isso não é possível. Sabe que isso não pode ser possível. Escreve então de forma metódica sobre centenas de acontecimentos, de lugares, de pessoas. Escreve centenas de hipotéticas previsões, sempre com o cuidado de introduzir subtis contradições entre elas. Quer ter a certeza de poder anular uma com a ocorrência de outra, quer ter uma prova matemática infalível. Um dia deixou de escrever. Desapareceu por completo, talvez para esquecer tudo aquilo, talvez para não enlouquecer. Todo o seu método não terá sido despropositado. Ao escrever centenas de desfechos possíveis para a sua história, terá sem dúvida acertado num deles. Pode até ser este que leio agora, em que ele regressa um dia para destruir tudo, mas isso seria talvez uma coincidência grande demais. Não me recordo sequer de ter vivido nesta casa...

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