Tuesday, June 28, 2005

O processo

O meu deve estar numa pasta verde, arrumada na cave, acessível só a dois ou três funcionários que é preciso chamar por um telefone preto dos antigos. Não o cheguei a ver. Existem computadores na repartição de Finanças aqui da zona, mas só os usam para imprimir ainda mais papéis que depois têm de ser escritos à mão, carimbados e obviamente arquivados. Durante a hora e meia que ali estive foram atendidas quatro pessoas. A minha vez iria chegar lá para as duas da tarde, o que "nem era assim tão mau" para a senhora que ficou com a minha senha. Fui-me embora quando vi uma das funcionárias colocar um dedal cor-de-rosa no dedo indicador para usar o rato...

Monday, June 27, 2005

Heidelberg

Image hosted by Photobucket.com
[Marktplatz ontem à tarde, imediatamente antes de ser invadida por um exército de turistas japoneses com máquinas fotográficas sincronizadas, a caminho do castelo]

Wednesday, June 22, 2005

Os vizinhos IV

Habemus administratorum

"Eu não falo com esta senhora, a não ser aqui na reunião e só sobre assuntos do prédio. Tem aqui as contas, tome lá, tome!" Para o outro lado da mesa voaram meia dúzia de folhas escritas à mão, a contabilidade de quatro anos feita pelo administrador cessante, o líder da facção A, sentado à minha esquerda. Pela facção B, uma oligarquia feminina sentada à minha direita em frente a uma ruidosa ventoinha, respondia a dona A., empunhando uma garrafa de água: "Nas suas contas não confio eu! Mostre lá a factura do arranjo do elevador, mostre lá!" À minha frente umas quantas procurações, umas mais válidas que outras, de todos os que há muito desistiram da vida militar e confiaram o seu destino nas mãos de uma das facções. "O sr. S. não pôde vir, está muito doente, mas ele disse que eu o podia representar, que ele depois assinava uma procuração." Nada feito. "Nem pensar, nem pensar! Você deve estar é doido! Pode falar por ele, mas sem procuração não pode votar! Nem pensar!". Devia ser mais ou menos este o ambiente que se vivia na final do campeonato de xadrez de 1972, entre Anatoly Karpov e Viktor Korchnoy. Houve de tudo, nessa final, desde os óculos espelhados de Korchnoy que encadeavam o adversário até ao parapsicólogo trazido por Karpov para hipnotizar e perturbar o oponente. Não ia achar nada estranho se no final alguém me dissesse que os estalidos da inútil ventoinha tinham sido propositadamente regulados de forma a provocar a súbita dor de cabeça da dona M., pouco tempo depois do início da reunião. Uma dor de cabeça que iria durar pelo menos três horas e meia. Até começar a minha. "Eu também voto aqui no jovem, como é que se chama mesmo?" Rino, José Rino. O novo administrador do condomínio, eleito com oitenta e tal por cento dos votos no sábado passado...

Monday, June 13, 2005

Alfama, ontem à noite...

Image hosted by Photobucket.com

(1) - 22h37
"- Então mas não posso virar à esquerda porquê? Deixe-me lá estacionar ali.
- Não pode ser, tem de seguir em frente.
- Então mas esta rua vai ter onde?
- Ao rio."

(2) - 23h42
"- Pode parar aqui, que eu faço o resto a pé.
- Três euros e novent... quatro euros. São quatro euros.
- Sabe que ainda há bocado estive aqui a tentar estacionar o carro...
- Olhe, é da maneira que não o vai buscar amanhã ao parque da polícia, como este aqui à frente..."

(3) - 23h56
"- Aí está ele! Então, só agora? Ainda há aqui sardinhas, anda cá.
- Eh pá, isto está com bom aspecto! Quem é que fez esta sangria?
- Foi o gajo! O único que não gosta e que nunca tinha bebido sangria. E foi ele a fazê-la!
- Isto com um bocado de hortelã vai ao sítio...
- Hortelã não tenho, mas há aqui oregãos...
- Cerveja, então. Dá-me lá uma dessas cervejas, que é melhor..."

(4) - 1h06
"- Só estamos nós os dois? Onde é que ficou o resto?
- Para o castelo, vai tudo a caminho do castelo. Aqui não vale a pena tentarmos andar juntos, é confusão a mais. Vira aí, na próxima à direita."

(5) - 1h06
"- Então mas não podemos entrar porquê? Deixe-nos lá ir ter com um amigo nosso que está aí no castelo.
- Não pode ser, tem de voltar para trás. Aqui dentro não há nada.
- A sua cara não me é estranha... não nos encontrámos já hoje?"

(6) - 3h06
"- Acho que não é para aqui... Descemos demais, sobe aí essas escadas à direita.
- Para onde é que é para ir, afinal?
- Largo da Palmeira, há uma mega-party no Largo da Palmeira...
- E sabes onde fica esse Largo da Palmeira?
- Claro que não."

(7) - 4h46
"ELSELBÊ! ELSELBÊ! GLORIOOSO! ELSELBÊ!
- Parece uma bancada, o pessoal ali nas escadas, olha lá...
- É o que eu te digo pá, Alfama é benfiquista, gosto disto."

Tuesday, June 07, 2005

Boletim tactónico II

Depois de um período de relativa inactividade, e mais de um mês depois do último boletim, é tempo para novo balanço nas movimentações da placa tactónica, que teve de resto desenvolvimentos inesperados nos últimos dias. A situação é agora de alerta amarelo nas zonas adjacentes ao corredor, principalmente a norte do epicentro original. Foram detectadas as primeiras deformações no soalho do quarto onde escrevo, mais ou menos no sítio onde se encontra o router wireless, que agora emite um bocado melhor o sinal de rede, por estar ligeiramente elevado. Contactado de urgência, o senhor P., canalizador da loja lá da rua (ao lado da escola de condução) diz que pouco pode fazer com os meios de que dispõe: "Todos os anos é a mesma coisa, chega o calor nesta altura e não tenho pessoal suficiente para ir a todo o lado, não pode ser, desculpe lá. Agora só para a semana...". Neste momento, estima-se que vinte e cinco por cento da área total do soalho tenha já sido afectada, um número que pode vir a aumentar nos próximos tempos. "Ah pois, isso agora com o calor ainda é pior, é... Pois é... Olhe, agora só para a semana..."

Thursday, June 02, 2005

Day 3 - The Outing

"You know, why we're here? To be out, this is out... and out is one of the single most enjoyable experiences of life. Did you ever hear people talking about "We should go out"? This is what they're talking about... This whole thing, we're all out now, no one is home. Not one person here is home, we're all out!"

Uma hora e meia, sempre a subir. De vez em quando as árvores desapareciam e olhávamos lá para cima, para o topo. Não existe neve nesta altura do ano, mas nunca se sabe, podia haver alguém a descer a pista à mesma. Bastava ter-se desequilibrado lá em cima, ou até durante o caminho. Nem todos chegaram ao fim, de resto. Havia sempre quem parasse para tirar fotografias. A vista era sempre a mesma, mas isso não parecia incomodar ninguém. O cansaço transformava-nos a todos em artistas meticulosos, demorados na escolha do ângulo e da luz certa. Cada foto acabava por demorar o tempo exacto de recuperação do fôlego...

Image hosted by Photobucket.com

Não fiquei muito tempo lá em cima. A vista do topo de uma montanha é algo a que não se dá muita importância, quando se é míope...

"You wanna go out: you get ready, you pick out the clothes, right? You take the shower, you get all ready... There you're staring around, whatta you do? You go: "We gotta be getting back..." - The Seinfeld Chronicles [pilot, 1989]

Wednesday, June 01, 2005

Day 2 - Fussweg zum Bahnhof

Não se consegue ver de cá de cima, do hotel, mas não é difícil adivinhar onde fica. O silêncio aqui só é interrompido pelo som que vem de lá de baixo, do vale. Semmering foi em tempos uma vila mineira, povoada por homens de picaretas e bigode, com lenços ao pescoço e suspensórios. Há ilustrações deles ao longo da estrada que leva ao hotel, às vezes uma ou outra fotografia. Deviam vir muitos, e o que procuravam devia ser valioso, porque desde cedo este sítio teve uma estação de comboios. Ainda hoje lá passam bastantes, consigo ouvi-los cá em cima, alguns se calhar ainda com mineiros de bigode e picaretas lá dentro. A estação fica lá em baixo, no vale. É sempre a descer, há um atalho pelo meio da floresta...

Image hosted by Photobucket.com

"Hallo! Hallo! Kommen sie hier, bitte!" Levantou-se de repente acenando o braço no ar, com um sorriso enorme e uma agilidade pouco habitual para a idade avançada que tinha. Dir-se-ia que me tinha reconhecido de qualquer lado. "Ich gehen zum Bahnoff", respondi eu em voz alta, e pouco mais conseguia dizer no meu alemão rudimentar. "Ja, ja! Kommen sie hier!". Fui. Era uma casa no meio da floresta, já perto da estação, com um pequeno jardim e uma cerca de madeira. Cumprimentou-me e levou a mão ao bolso. "Ich sprecht nicht deutsch", avisei, mas ele só sorria.
Estendeu-me um pacote de Wanner, umas wafers com creme de noz, fabricadas em Viena desde 1898. Recusei, ele voltou a insistir. "Für sie, kollege! Das ist für sie!". Agradeci, pegando finalmente nas Wanner. "Alles gut! Auf wiedersehen...", despediu-se e foi para dentro de casa, satisfeito por ter cumprido a sua missão. Não lhe perguntei há quantos anos ele estava ali à espera, com as Wanner dentro do bolso, de alguém que em tempos deve ter sido parecido comigo...