Wednesday, February 25, 2004

O Carnaval

O azul fluorescente do cabelo só aparecia nas máquinas fotográficas digitais. Ao vivo não se notava.
Era do flash, dizia eu. Mas não era. Era eu que fingia outra coisa. Só não enganava a máquina. "Há bocado fotografei uns vampiros, olha o que aparece na foto". Não aparecia nada, pois claro. Os vampiros não aparecem reflectidos num espelho, porque haviam de aparecer numa fotografia? "Mas eles estavam lá". Não tenho a mais pequena dúvida. Eu também vi alguns, perdidos entre os chineses e os piratas. Mas tenho dúvidas que a minha recordação vença a da máquina. "Eu vi-te ontem, tinhas o cabelo azul... Não vi foi o F. Ele apareceu?" Sim, estava ao meu lado. Na fotografia contudo, só se vê um copo a pairar em pleno ar...

The Singer

"As I walk these narrow streets
Where a million passin feet have trod before me
With my guitar in my hand
Suddenly I realize nobody knows me

Where yesterday the multitude
Screamed and cried my name out for a song
Today the streets are empty
And the crowds have all gone home"

"I pass a million houses
But there is no place that I belong
All I knew to give you
Was song after song after song

All the truths I tried to tell you
Were as distant to you as the moon
Born 200 years too late
And 200 years too soon

I'm a child of this age
Locked into the pages of your book
And when I am but dust and clay
And all the children stop to take a look

Will they marvel at the miracles I did perform
And the heights I did aspire
Or will they tear out the pages of the book
To light a fire

With the rain on my face
There is no place that I belong
Did you forget this fucking singer so soon?
And did you forget my song?"


"The Singer" - Nick Cave Solo Performance at CCB
dedicated to Johnny Cash (1932-2003)

Thursday, February 19, 2004


Voice of the Fire é um livro de contos, todos contados na primeira pessoa. São doze, no total. Doze narradores diferentes, doze histórias de épocas distintas. Um único elemento em comum: todas elas se passam no que é hoje Northampton. O primeiro dos contos ouvimo-lo da boca de um rapaz que é expulso da sua tribo em 4000 AC. O último data de 1995 e é narrado pelo próprio autor. Pelo meio, encontramos histórias de solidão e traição de um fiscal romano (290 DC), ou de dois amantes que foram queimados por bruxaria em 1705. Nada de muito prometedor, à primeira vista. A surpresa vem com a leitura:

"A-hind of hill, ways off to sun-set-down, is sky come like as fire, and walk I up in way of this, all hard of breath, where is grass colding on I's feet and wetting they." Hob's Hog 4000 BC

O rapaz abandonado pela tribo em 4000 AC conta a sua história naquilo que deveria ser o inglês de 4000 AC... os adjectivos contam-se pelos dedos das mãos, os verbos não se conjugam ainda. A construção das frases é rudimentar e o vocabulário limitado. Cada frase tem de ser lida uma e outra vez, decifrada, aprendida. Uma linguagem de metáforas primitivas: "make hot waters out I's face" só mais tarde seria substituído pelo verbo cry. O início é difícil, mas a linguagem vai evoluindo ao longo do livro. Em 2500 AC aparecem as primeiras "willages". Em Novembro de 1064 já se celebra o "All Hallow's Eve", que havia de degenerar em Halloween. As palavras evoluem de conto para conto. As histórias também. O rapaz abandonado é traído e queimado vivo em 4000 AC. Dois mil anos depois a sua história é contada pelos anciãos da aldeia aos mais novos, mais ou menos da forma que a ouviram contada pelos antepassados. No tempo dos romanos é já uma lenda recordada apenas pelos druidas. Em 1100 uma mulher sonha com essa mesma história e anuncia-a como prenúncio de vitória antes de uma batalha. Ela própria será santificada séculos mais tarde. Em 1931 a história sobrevive apenas como uma expressão, um ditado popular cuja origem se perdeu. Em 1995 ela é imaginada a partir desse ditado e serve de inspiração para escrever um livro sobre a história do Homem, vista de Northampton ao longo dos séculos...

Alan Moore normalmente escreve livros de BD. Alguns deles passaram a filme e muito se perdeu nesse processo. É sempre assim...

Wednesday, February 18, 2004


Prometeu e cumpriu. Que sim, que ia ter um blog. Com links para este e para o Take-Off. Com comentários e tudo. Depois foi buscar outra mini ao balcão porque devia estar farto de tanto blog num sábado à noite. Mas manteve a palavra dada aos amigos. E aqui está o resultado. Prossigam com cuidado, que eu não sei o que ele vai fazer...

Friday, February 13, 2004

Estava atrasado, mas era hoje o primeiro teste. Desta vez não ia buzinar até aparecer alguém, este carro já o tinha visto antes, só preciso de me concentrar. O Sr. Santos do café?
A noite já estava perto do final, pelo menos para mim que tinha de trabalhar no dia seguinte. Num bar que agora já não é o Divino, no Bairro Alto, a conversa tinha sido orwelliana. Em quantas bases de dados existo eu, existimos nós? O que sabem Eles de mim e dos meus hábitos? Saberão Eles o que eu vou querer comprar amanhã, ou daqui a 10 anos? Pior do que ser catalogado, do que ter um código de barras, é ter o código de barras errado... Tinha por isso decidido ajudá-los, responder a todos os formulários, contar tudo, receber apenas a publicidade que me estava destinada. "O ideal" - dizia eu - "era entrar numa livraria e ser logo conduzido à minha secção, longe do Paulo Coelho e da Rebelo Pinto... era entrar neste taxi e ser conduzido ao Lux, sem ser preciso dizer nada..."
A realidade surpreende-nos quando menos esperamos. Entrámos no taxi e, antes mesmo de eu ter falado, perguntou-me o taxista "Vai para a Praça do Chile, não é?"
O Sr. Santos tem um parecido mas é vermelho. O homem do talho nº 29, no mercado, tem um cinzento como este mas costuma deixar um bilhete. O Sr. Manuel do restaurante?
Foi assim, dentro um taxi, há mais de um ano atrás, que eu descobri que não conhecia nenhum dos meus vizinhos, excepto talvez o homem que me vende o Público todos os dias, já há 6 anos. O taxista conhecia-me perfeitamente. "Eu sou irmão do Manel! Sabe pois, o do restaurante. A minha cunhada tem também a Pastelaria na esquina, nunca lá foi? Pois eu costumo vê-lo é no restaurante, você mora no prédio em frente ao Minipreço, não é?". Era. Não foi preciso dar indicações. Senti-me envergonhado por não fazer a mínima ideia de quem era aquela gente que me via todos os dias. Resolvi fazer a minha própria base de dados...
Não, não é o Sr. Manuel porque ele hoje trouxe a carrinha branca que está ali em frente à loja russa... Concentra-te...
O carro era do Sr. Vitor, que vende frangos assados no mercado. Pediu desculpa, mas como hoje era quinta-feira, ele pensava que eu não tirava dali o carro. "À quinta você nunca tira o carro durante o dia..." Pois, às quintas costuma de facto ser assim...

Tuesday, February 10, 2004


"As coisas duplicam-se em Tlön; propendem igualmente para se apagarem e para perderem os pormenores quando as esquecem as pessoas. É clássico o exemplo de um umbral que perdurou enquanto o frequentava um mendigo e que se perdeu de vista à sua morte. Às vezes uns pássaros, ou um cavalo, já salvaram as ruínas de um anfiteatro." Jorge Luis Borges, O jardim dos caminhos que se bifurcam (1941)

Monday, February 09, 2004


O círculo do meio representa o Sol. A lua está do outro lado, à entrada da área, perto da baliza (um anel circular feito de pedra, com menos de meio metro de diâmetro). Nascimento e morte. O jogo começa e é uma vida o que vemos em campo: a bola é a alma, jogada aos pontapés, não pode nunca cair no chão. Toda a gente sabe o que tem de acontecer. A alma tem de viajar de Oriente para Ocidente, do Sol para a Lua, tem de nascer no círculo do meio e morrer dentro da baliza em honra de Ah Kinchil, o deus Sol. Depois começa tudo outra vez, porque o jogo de Tlachtli representa a vida e os Aztecas acreditam na reincarnação...

O nevoeiro era tanto que não se conseguia ver nada. Sentia-me mal por não ter levado o cachecol, era como um soldado sem farda, não se vai assim para um campo de batalha. É uma falta de respeito pelo adversário, que precisa de ver a nossa cor, precisa de reconhecer o opositor. Eu não conseguia ver o azul deles, mas conseguia ouvi-los. Era de resto tudo o que conseguia fazer... ouvir. O guarda-redes da minha equipa estava ali, a poucos metros, longe do jogo que decorria na outra ponta do campo. Olhava para todo o lado, não fosse a bola aparecer de repente, sem aviso. Só devia consegui ouvir, como eu. Ao meu lado, um idoso com uma visão que a idade não lhe permitia exaltava-se com empurrões e pontapés que só ele conseguia ver. Um outro inclinava a cabeça para esquerda, depois para a direita, algo se havia de mexer naquela bruma. De repente gritaram todos GOLO, e eu também, e pulei também, que grande jogada que era, já se adivinhavam os nomes dos protagonistas, depois se vê na televisão como foi. Os cânticos pararam e sentámo-nos todos. Um miúdo com um rádio da coca-cola finalmente fez-se ouvir: "Foi à barra, não entrou". O velhote não deu parte fraca: "Bateu na barra, mas quando bateu no chão, estava para lá da linha que eu vi". Fizemos-lhe a vontade e gritámos todos "ladrão" para o árbitro...

Friday, February 06, 2004

"All novelty is but oblivion" - Solomon

Tento recordar o que já aqui escrevi há seis meses atrás, mas a memória atraiçoa-me aqui e ali. Faltam-me pedaços inteiros de narrativa, há partes que não estavam ligadas desta forma e a citação inicial também não era esta mas uma muito parecida... Nada disto tem importância, bem sei, daqui a outros seis meses não existirá outra recordação que não esta.
Sei que mais tarde me vou lembrar de quando e como comecei a escrever um blog. Deve ter sido mais ou menos em Agosto, Setembro de 2003, quando a blogomania começou (quando eu me apercebi dela). Da mesma forma sei que se lesse hoje a obra de Tolkien, daqui a duas ou três décadas ia-me lembrar de a ter lido quando tinha 15 anos, numa Biblioteca que mudou de sítio em Leiria e no autocarro a caminho de casa. Como todos os outros. Tive dificuldade nos dois primeiros filmes, mas no último Senhor dos Anéis já consegui evocar duas ou três recordações. Sim, eu tinha lido aquilo antes, chovia lá fora, já me tinha esquecido... A memória é um virus, sei-o hoje. O simples facto de eu me lembrar de uma ideia alternativa para o início deste blog (podia por exemplo apresentá-lo como um falso blog, escrito não por mim, mas por um programa de inteligência artificial que roubava pedaços a outros blogs, a livros, a filmes...) e de a contar a várias pessoas pode ser suficiente para criar nelas uma vaga recordação. Algumas julgarão mesmo ter lido aquela versão do blog e não a real....
É difícil ser metódico na construção das próprias memórias. Mas não quero ser desonesto com aquilo de que me vou lembrar mais tarde. Isto escrevi eu há seis meses atrás. Lembro-me perfeitamente...