Tuesday, June 29, 2004
Estava no sítio certo à hora combinada. "De qualquer modo, era o que estava escrito", disse-me com uma convicção inabalável. Não tinha a certeza se era um louco ou apenas alguém a tentar chamar a atenção. Tinha, no entanto, uma história interessante para contar. E isso é algo que não aparece todos os dias... "Sim, é estranho, eu sei. Mas todas as histórias lhe parecerão estranhas se olhar para elas da forma correcta. E esta não é menos verdadeira por isso". Impressionava a serenidade no olhar, a certeza nas palavras. Era como um actor a desempenhar um papel. Respondia a cada pergunta que eu fazia como se já estivesse à espera dela, como se tivesse lido o diálogo no argumento de um filme ou numa peça de teatro. De certa forma, era mais ou menos isso que se passava, disse ele. Desafiei-o. Perguntei-lhe se sabia o que eu ia perguntar a seguir, se também isso estava escrito. "Claro que sim", foi a resposta. "Pois se fui eu que o escrevi..."
E contou-me então a sua história, a incrível história que me tinha feito deslocar até aquele remoto local, só para conhecer autor de tamanha loucura. Não tenho a certeza de a recordar na totalidade. Talvez seja melhor assim.
K. tinha um blog. Começou, como muitos outros, por escrever sobre coisas mundanas, assuntos triviais. Queria escrever um diário que um dia lhe lembrasse de quem ele tinha sido no passado. Não demorou muito tempo, no entanto, a perceber que a memória é frágil e fácil de manipular e que algumas pequenas alterações no texto inicial pudessem talvez mudar as suas recordações futuras. A isto se dedicou com algum sucesso durante poucos meses, mudando pequenos detalhes, às vezes alterando apenas a hora em que tinha sido escrito o texto. Escreveu em certo post rasgados elogios a um filme que nunca vira, misturando esta história inventada com uma ida real ao cinema na companhia de amigos. Não foi para ele uma surpresa quando semanas depois todos o que o acompanharam se recordavam de ter visto o filme errado. Um dia, no entanto, enganou-se na data do post. E escreveu sobre algo que nunca acontecera, uma memória falsa de uma conversa que nunca existira, publicando-a... com a data do dia seguinte. O resto adivinha-se. "À sensação de deja vu seguiu-se uma forte dor de cabeça, à medida que ouvia as palavras que tinha escrito no dia anterior, exactamente as mesmas palavras, serem proferidas pelo meu interlocutor. Um arrepio de frio percorria-me o corpo, estava paralisado com medo..." O medo desapareceria com o tempo, era agora um homem sereno e determinado aquele que tinha à minha frente. Decidido a acabar com tudo aquilo. "Como pode adivinhar, já me aconteceu de tudo um pouco. Escrevi para mim próprio uma absurda quantidade de futuros diferentes, julgo que os vivi todos. Isto tem de terminar." Fez uma pausa longa, estudada. "Contei-lhe tudo isto porque não podia suportar a ideia de cair no esquecimento total. Sei bem que ninguém acreditará na sua história, nem mesmo você. Nem o meu nome recordará. Chamar-me-á K. de certeza, lembrar-lhe-ei Kafka. Suponho que tudo isto é um bocado kafkiano, não?". Olhou para o relógio e sorriu. "É agora." E desapareceu de repente, assim mesmo, sem deixar rasto, como uma personagem de um conto fantástico que ele próprio terá escrito...
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