Thursday, March 18, 2004



Não sei que horas seriam, mas achei estranho todas as carruagens estarem vazias. Entrei sem me preocupar muito com o assunto, devia estar mais atrasado do que pensava. Distraído a ler o jornal, não dei pela entrada dele, duas estações depois. Sentou-se mesmo à minha frente, e começou a ler também. O que me chamou a atenção foi a forma como ele lia o jornal. Da última para a primeira página. Como eu. Não lhe conseguia ver a cara, apenas o jornal. Era o Público. Ouvi então o meu telemóvel a tocar, devia estar mesmo atrasado. Procuro-o no bolso esquerdo mas não era o meu que tocava. Era o dele. Atendeu. Reconheci a voz imediatamente, mas só me refiz do choque algum tempo depois. Ele olhou para mim calmamente e apresentou-se: "Acho que sei quem és. Chamas-te José Rino. Eu também me chamo José Rino. És o segundo que conheço, para além de mim claro..."

Não era claro qual de nós sonhava o outro. Não éramos exactamente iguais, apenas muito parecidos. Éramos versões diferentes da mesma pessoa, duas das infinitas alternativas que poderiam existir. "Todo o nosso passado é igual até um único instante", disse-me ele, "divergimos num momento qualquer, uma decisão que tu tomaste e eu não, ou o contrário". Era a segunda vez que lhe acontecia aquilo. "A primeira vez que isto me aconteceu estava a olhar para o espelho de um elevador quando o outro entrou". Mais ou menos como no videoclip de David Bowie, disse eu. "Sim, mais ou menos isso".


Tentámos perceber qual o momento da divergência, mas sem grande sucesso. Não nos lembrávamos exactamente das coisas da mesma forma. Mesmo as recordações mais antigas eram ligeiramente diferentes, alteradas pela vivência posterior. "I like to remember things my own way, not necessarily the way they happened". Lost Highway? "Sim. Já agora, qual é a tua interpretação do filme?". Um castigo eterno, respondi. Um homem condenado a reinventar uma história de amor que ele arruinou e que nunca conseguirá reconstruir. Condenado a conhecer sempre a mesma mulher e a falhar sempre. "Uhmm... Um Sísifo moderno. Eu não o vejo assim. Para mim ele está apenas indeciso. Vê uma estrada à sua frente, sabe que se seguir os riscos não se desvia dela, mas não sabe onde a estrada vai dar. Ninguém sabe. Mas não é a única estrada, há muitas mais, e ele tenta imaginá-las a todas. Está a tentar tomar uma decisão. E a decisão que tomar vai mudar tudo. Vai dar origem a uma das diferentes versões dele que vemos no filme..."

Saímos em estações diferentes, claro. Eu acordaria pouco depois, de repente, sobressaltado pelo som do despertador. Julgava acordar em Lisboa, talvez por causa do metro, mas estava ainda em Heidelberg. Foi há um ano atrás que terei sonhado isto. Ou algo muito parecido com isto. Na altura não fez muito sentido, mas hoje acho que o sonhei um ano cedo demais.

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