Wednesday, August 18, 2004

Açores

"O Público, ainda tem?". São três da tarde. Ou então duas, que eu não tenho a certeza de ter acertado o relógio. O tempo aqui, de resto, corre a um ritmo diferente. "Só tenho o de ontem. O de hoje ainda não chegou, o avião atrasou-se. Venha cá daqui a um quarto de hora". Estamos dentro do hipermercado Modelo, na Angra do Heroísmo (aqui não se diz em Angra, diz-se na Angra). Dizem-me que foi aqui nos Açores que o hipermercado teve de mudar o nome de Continente para Modelo. Por causa da piada. Já ninguém aguentava ouvir que não era preciso ir ao Continente comprar leite, que aqui nos Açores também o havia. Resolvo esperar pelo jornal. Na loja ao lado da tabacaria, vendem-se televisões e rádios. E em todas as televisões colocadas em montras, aqui ou em qualquer rua da cidade, o que se mostra é sempre o mesmo. A tourada. Que não é bem uma tourada. É mais uma largada de touros. Tapam-se portas e janelas com placas de madeira, fecha-se a rua ao trânsito e largam-se os touros, que correm atrás de todos os que lá querem estar até se cansarem. Às vezes também os largam na praia. Isto acontece cada vez que há festas. E aqui há festas de Maio a Outubro, quase todos os dias. É que cada povoação tem a sua semana de festas. Até "vêm gentes de outras ilhas para as festas, quando não vamos nós lá". Por decreto regional, as festas só podem começar a partir das seis da tarde. Aqui trabalha-se até às cinco, e se a festa começasse mais cedo, toda a gente faltava ao trabalho, ou saía mais cedo. E se a festa calha ser na povoação de onde se é oriundo, já se sabe. Uma semana de baixa por motivo de doença. A festa, hoje, é na Agualva. Fica entre os Biscoitos e a Praia da Vitória. "Isto hoje vai ser de arromba, vêm gentes de outras ilhas e tudo, vai tudo para lá!". Pois claro. Vamos nós também.
É meia noite. Ou então onze, tenho de mudar a hora ao relógio. O carro que alugámos tem o farol do lado direito solto. Com os máximos ligados a estrada é iluminada aos solavancos, o efeito não deixa de ser engraçado. "Vai devagar, que pode aparecer uma vaca de repente no meio da estrada". Já não estranho. Aqui pode encontrar-se de tudo no meio da estrada. Nas cidades, aliás, não se estaciona. Os carros param à nossa frente e ali ficam. Toda a noite, se for preciso. Só não podem é parar dois no mesmo sítio, que a estrada ficava cortada. Em Agualva, a festa ainda dura. No pequeno largo da Igreja leiloam-se bolos. Olho em volta e todas as casas têm ainda os taipais. Por aqui passou o touro, horas antes. Na varanda das casas, para além da bandeira portuguesa, mais duas. A dos Açores e a do país que acolheu o emigrante açoreano. Canadá ou Estados Unidos, quase sempre. Entretanto começa o baile. Não se vê ninguém da nossa idade. "Isso a malta jovem está ali na discoteca. É atrás do centro recreativo". É preciso perguntar onde fica, quem não sabe não encontra. Atrás do centro, num terreno descampado pouco maior que o largo da igreja, construíram de propósito uma "discoteca" para os jovens "abanarem o capacete". Toda em madeira, de fora só se vê uma cerca alta. Lá dentro é a surpresa. Dois bares, mesas e bancos (os bancos são troncos grossos enterrados no chão e aos quais foi pregado um assento redondo de madeira) e até uma pista de dança coberta, com cabine de DJ e tudo. Totalmente construída em madeira, improvisada, uma arquitectura tosca, mas genuína. É visível o empenho de toda a aldeia na festa. Na pista de dança, ouve-se Beyoncé. Ou algo parecido. Não se encontra só gente da aldeia. É impossível não reparar nos americanos, de chapéu de basebol na cabeça e roupas desportivas. Gigantes, mais altos e com mais do dobro do peso do que os outros, nós. A base das Lages fica a poucos quilómetros. "Hey Jessica, gimme a beer, will ya?" A Jessica não o ouve, ou não o percebe. Provavelmente nem se chama Jessica, que ela é aqui da aldeia. Peço-lhe eu uma imperial, que eles podem ficar violentos, se não lhes dão o que querem. "You're my man! Thanks pal!" E de um trago, bebe-a toda. A festa continuou pela noite fora. Eram sete da manhã quando regressámos a Angra. Ou então seis...

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