1506 - 2006
"Vi qe em Lixboa se alçaram
Pouo baixo & villãos
Contra os nouos Christãos
Mais de quatro mil matarã
Dos qe ouuerão nas mãos."
No meio de algumas dezenas de pessoas, mais jornalistas, fotógrafos e um rabi, lá encontrei alguém conhecido. Guardava uma vela dentro de um saco de plástico, era a única que tinha lá em casa. Não havia ainda sítio para a colocar. "Fizeram há pouco a oração, o kaddish. Agora não sei o que se segue..." À minha frente, a objectiva de uma máquina fotográfica aproxima-se de um kippah. A foto vai fazer a capa do Público, no dia seguinte. Estamos no Largo de São Domingos. Há precisamente 500 anos atrás, dois irmãos, judeus convertidos à força, eram arrastados do interior da Igreja para o local onde estamos. O rosto de Cristo iluminara-se subitamente no altar e onde todos julgavam ver um milagre, o judeu explicava apenas ter visto o reflexo de um raio de sol. Aqui o espancaram até à morte, a ele e ao irmão que o acudiu. No Rossio, mais ao lado, queimaram depois os corpos mutilados, mais ou menos no sítio onde décadas depois haveriam de arder as fogueiras da Inquisição. Isto foi apenas o início. Incitada por frades dominicanos, a população dirige-se a seguir à Judiaria, perseguindo todos os "da semente de Israel". O que aconteceu nos 3 dias seguintes, a nossa História preferiu esquecer.
"Hũos delles viuos queimarã
Mininos espedaçarão
Fizerão grandes cruezas
Grandes roubos & vilezas
Em todos quantos acharão."
"De entre a multidão surgiram homens armados de espadas e durante três dias mataram quatro mil almas" conta Salomão Ibn Verga, num texto traduzido do original hebraico pelo jornalista Nuno Guerreiro, no seu excelente blog. Foi na Rua da Judiaria, de resto, que li pela primeira vez os testemunhos do massacre. Não fazia a mínima ideia que tal tragédia tinha acontecido. "Eu soube por portas travessas... digamos que percenço ao grupo" conta-me a única pessoa que conheço na praça, que logo a seguir telefona ao filho. "Então, Daniel? Não vens homenagear os teus antepassados?" O Daniel afinal já tinha passado pelo Rossio, mas não tinha encontrado ninguém. Acendem-se agora as primeiras velas, aos pés de uma oliveira. M. tira a sua do saco de plástico. O vento não ajuda muito, mas a vela é larga, não cai facilmente. E lá ficou a arder, apesar do vento, contra o esquecimento.
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