Saturday, October 30, 2004

"Mas porque é que não me deixam ir embora? Eu não fiz nada!"
Não tinha aspecto disso. Blusão verde, calças castanhas rasgadas atrás (terá sido queda ou foi por ali que o agarraram?), uma mala branca na mão direita que ele insistia ter comprado hoje. "É minha, é!" Um dos polícias sorri, o outro começa a perder a paciência. "Se não te calas, algemo-te lá dentro". Fecha-se a porta de vidro, que ele não se cala. Continuamos nós a descrever a mala que desapareceu à P. Se fosse branca, se fosse aquela, estava o problema resolvido, mas não. Ninguém viu quem levou a mala do Suave, mas não tinha sido este de certeza. Acalma-se entretanto, e deixam-no sentado sozinho, à entrada da esquadra. "Central, liguem para a CGD, para cancelar um cartão de crédito". Demora tempo, mas tudo funciona e parece moderno. A máquina de escrever deu lugar a um computador, o telefone não pára, entra mais um polícia na sala, quer mandar um fax "lá para baixo". Ouve-se um estrondo à entrada, o cinzeiro preto metalizado, ali encostado à porta, rolava pelo chão. "Deixem-me ir embora!" Três guardas fardados de dois metros de altura sobem as escadas em segundo e meio. Um outro aparece, vindo não sei de onde e levanta-o pelo braço. Levam-no lá para dentro, daqui a pouco um deles volta com um passaporte espanhol que estava dentro da mala. "Este já está caçado! Vocês acreditam que ele mandou-se para o nosso carro aos pontapés? Andava aos pontapés a todos os carros que estavam parados ali no Camões... nós encostamos ao lado dele... e ele começa aos pontapés! Nem viu que o carro era da polícia! É da droga..." O que escreve no computador abana a cabeça, encolhe os ombros como se não fosse nada de especial. "Diz-me portanto que as chaves do carro estão também dentro da mala...". Na parede ao canto da sala, em cima de um pedestal, uma pequena estátua chama-me a atenção. Uma deusa, parece, com uma espada na mão direita, está prestes a atacar um homem que pisa com o pé esquerdo. Não é a Justiça, que essa tem uma venda nos olhos e pratos de uma balança nas mãos. "Pronto. Já está. Olhe, pode ser que o que lhe roubou a mala comece também para aí aos pontapés... Se fossem todos assim apanhavamo-los logo..." E com a mão faz um movimento brusco, como se fosse ele a estátua a decepar o culpado... Não é a Justiça. É Samael, anjo patrono de todos os que lutam num campo de batalha, símbolo da severidade de Deus. Da vitória sobre as adversidades. Vamos lá ver...

Thursday, October 28, 2004

"I am not sure that I exist, actually. I am all the writers that I have read, all the people that I have met, all the women that I have loved; all the cities that I have visited, all my ancestors..."



«(...) To talk closely to Jorge Luis Borges is to track him through a labyrinth of his pasts experiences and attitudes, and the walls that one encounters in the search might be painted in unexpected ways. These may furnish clues or merely diversions in the pursuit, but to understand Borges at least partially is to realize that these clues and diversions are the Borges. We must not expect to find Borges the same each time. There is not one Borges, but many.

This is the Jorge Luis Borges whom the Artful Dodge encountered on April 25, 1980»

"Nothing, nothing, my friend; what I have told you: I am not sure of anything, I know nothing... Can you imagine that I not even know the date of my death?"
[Borges rests in the labyrinth. photo taken from Borges and Kodama Atlas - Crete, 1983]

Thursday, October 21, 2004

Cabala

É tudo verdade! Estamos todos a ser manipulados, enganados. A realidade que nos vendem é falsa, nada do que verdadeiramente se passa chega ao nosso conhecimento. A censura voltou e assume proporções alarmantes. É já a segunda vez que falta a luz aqui em casa quando o Benfica está a jogar. Da primeira tinha sido um incêndio. Nessa altura não desconfiei de nada, o método tinha sido tosco, talvez apenas um ensaio. Mas desta vez não. Desconfio que o Governo tem mão nisto. Mal o Nuno Gomes marca o segundo golo, a luz vai abaixo. Meia hora depois, alguém com um rádio ligado avisa da tragédia. Está empatado o jogo. Um improvável 2-2, e eu começo a desconfiar. Muito conveniente, este apagão. Mas o aviso desta vez era bem claro, impossível ignorar os sinais. Vejo mão de algum ministro no meio disto tudo. Ordens superiores, pois claro, um sinal dos tempos que aí vêm. É que desta vez a luz só faltou do lado esquerdo do prédio... Do lado direito estava tudo bem, só não tinham televisão. Parece que a antena do prédio era alimentada também pela parte esquerda do edifício. Agora já não é. "Tudo em ordem. Só falta agora aquele prédio ali na António Arroio", disse o técnico da EDP antes de se ir embora. "Era só um problema de fase..." Pois.

Monday, October 18, 2004

Na rádio, hoje de manhã a caminho do lab, enquanto esperava que o sinal ficasse verde...

- ...em linha no forum TSF, está a ligar de Faro. Bom dia.
-
(voz arrastada) Foi em mil novecentos... novecentos e trinta que Einstein ganhou o nobel da Física. Não pela re... revolução que impôs na Mecânica Newtoniana, e que mudou (pausa) séculos de pensamento marcados pela queda de uma maçã, mas pela relatividade. (nova pausa, mais alto, agora) Primeiro restrita, depois generalizada, a acção da gravidade, (embalado) força que tudo une e que...
- Lembro o nosso ouvinte que o tema do Forum é o resultado das eleições nos Açores e Madeira...
- inalterada a velo... a velocidade da luz. Os gravitões, que por todo o lado viajam,
(pausa, voz grave) por terra deixaram os alicerces da mecânica antiga. E dos escombros da velha nasce a nova, a relativa. Relatividade generalizada (embalado outra vez) a todos envolveu e relativizou, a todos tocou. (pausa triunfante) Tudo é relativo! E neste presente em que...
- Perdoe-me o trocadilho, caro ouvinte, mas relativamente às eleições...
- ...prisioneiros todos nós da lei da Física que tudo relativiza e tudo contemporiza... São nossos também os gravitões que se propagam, não já no éter, é certo, mas ainda assim...


Não me lembro do resto. É pena porque no final tudo o que ele queria era o prof. Marcelo de volta na TVI.

Saturday, October 16, 2004

"As long as five years ago I had seen the basics of things like the paint brush program, being able to draw on screen, to color on the screen. I had seen that and thought there is an application here somewhere for comic books. About four years ago, the first computer companies came to see me. Eventually, about every four months someone would show up my doorstep, but they had nothing concrete to offer. Most of the computer companies had the same scenario. If you can get your artists to close up the black lines you can use this. The trouble was, if there was a break in the black line, color would leak through the opening and down most of the page. I told the computer companies to come back when they had a solution."
[Bob Rozakis, publishorial on Doom Patrol #21, DC Comics - April 1989]

Chove lá fora. Um toque numa tecla e o Doom Patrol #21, que ocupava todo o ecrã do meu portátil desaparece numa fracção de segundo. Fica só o Photoshop, com imagens de células e diagramas e janelas ainda em branco, onde não tarda nada irão aparecer mapas de interacção de proteínas e esquemas coloridos do que julgamos ter acontecido com elas. Não é que chova assim tanto lá fora, os outros devem estar a jogar futebol de certeza, mas a tarde hoje está reservada para o desenho. Olho para a folha de papel reciclado onde planeei a apresentação. Uns quadradinhos com umas letras e rabiscos lá dentro, parecem um rascunho de banda desenhada, mas feito por um miúdo de oito anos que pegou pela primeira vez numa caneta. Depois para o computador outra vez. Fizeram muito mais, essas "computer companies", do que resolver o problema da cor que fugia pelas aberturas nas linhas pretas. Nunca, se não fosse o computador, eu conseguiria desenhar algo parecido com o que vejo aqui à minha frente...

Monday, October 11, 2004

Foi...



O Colectivo continua a arrasar e a fasquia está cada vez mais alta.
Infelizmente, por razões técnicas que incluem o mau funcionamento da net aqui no laboratório, mas que passam também pelo resultado do esforço desenvolvido por estes rapazes, não me posso alargar em grandes descrições. Tinha para aqui um post-it amarelo que não chegou a ser entregue ao dijai Schmichael, por motivos alheios à minha vontade, mas não o encontro agora. Prometo devolver a moeda de um euro para os discos pedidos assim que me lembrar de quem ma tinha dado. Este blog segue dentro de momentos...

Friday, October 08, 2004

"Entrem... entrem... perguntem tudo o que quiserem!"
A fita ainda estava a rodar, enrolava-se em cima de um prato redondo, maior do que eu imaginava. O processo deve ser delicado, que o nosso anfitrião não tirava os olhos dela. Mas fazia-nos sinal com o braço, tinha-nos visto pelo canto do olho...
"Podem entrar... estejam à vontade!"
Não é muito grande, a cabine de projecção da sala 3 do King. O espaço é quase todo ocupado por dois projectores enormes, mais um sistema de pratos onde a fita acaba agora de se enrolar. Lá dentro sente-se o calor das lâmpadas de projecção. Temos de baixar a cabeça enquanto andamos, para evitar as condutas de ar que as arrefecem.
"Estas lâmpadas são de um gás chamado Xenon. Temos de ter muito cuidado com elas, porque o gás provoca cegueira. Contaram-me que uma vez no São Jorge um colega ficou cego com uma que explodiu. Ouviu-se no edifício inteiro, a explosão..."
Não deverá existir castigo pior, para um projeccionista, do que ficar cego. V. olha com respeito para a máquina com que trabalha horas a fio. Conhece-lhe todos os truques, explica-nos com orgulho indisfarçado como tudo funciona. Conta-nos tudo o que fez na última hora e meia para que nós, lá em baixo, do outro lado daquela pequena janela de vidro, pudéssemos estar num outro mundo, sonhar com a ilusão das imagens...
"Trabalho dia sim, dia não. O ano todo. É um trabalho muito duro, mas..."
... mas é uma paixão, também. É preciso gostar muito de cinema para passar ali o dia todo.
Sempre gostei do King. Pelos filmes que só ali passam, pela ausência de pipocas e de conversas durante o filme. Por ser no fundo, um dos poucos locais onde se vê realmente cinema. E onde se gosta de cinema.
"Este projector aqui só passa filmes alemães. Tivemos de o comprar de propósito, porque a fita alemã tem 16 mm, é diferente das outras..."
Assim vale a pena.

Thursday, October 07, 2004



Um erro tipográfico. Dois. Consoantes trocadas, é preciso um olho treinado para as encontrar. A maior parte das vezes passam despercebidos estes erros, que as palavras são lidas como um todo, e não letra a letra. Mas estes estão muito próximos, não fazem sentido. Não nesta frase, de qualquer maneira. Esta parte necessitava de ponderação, devia ter sido relida mais do que uma vez. Impossível, alguém escrever isto e não reparar num dos erros. Impossível. A não ser, é claro, que ninguém o tenha escrito. Mais um documento falso. Estão a ficar cada vez mais difíceis de identificar. Lá fora recomeça a nevar, é a quinta vez desde Julho. Mais dois dias e tinha ganho qualquer coisa, mas assim não. Tão cedo não volto a jogar no tempo. Li no outro dia que no início do século passado ainda se conseguia prever o tempo e que tudo mudou por causa da poluição. Parvoíce. Essa história deve ser inventada, como as outras. O tempo sempre foi assim, imprevisível como a lotaria. Vi uma vez um jornal, num e-museu. Lá estava, na última folha, a previsão do tempo. Mesmo ao lado das previsões astrológicas para a mesma semana. Não, a mim não me enganam. Tento outra vez. A um breve olhar para o símbolo de procura, surgem mais uns milhares de documentos. Tudo o que foi escrito, tudo o que foi filmado, documentado, tudo o que foi criado está ali. Tudo. Já não se chama web ou net. Mas a publicidade continua lá. "Conheça a sua vida anterior". Pois. A nova moda. Por um preço módico descobrem o que eu andava a fazer há mais de cem anos. Basta um cartão de crédito e acesso ao meu e-life-log para descobrirem uma encarnação minha, algures no século passado. Há sempre um e-life-log suficientemente idêntico ao nosso, excepto claro, o facto de só existir na sua versão primordial: um blog. Tudo automatizado, claro, tudo feito por um programa de computador. Como a maior parte dos documentos que tenho diante de mim. Todos falsos, ou quase. É difícil descobrir os autênticos. No início, ainda era fácil, eram os que tinham erros. Um computador não gerava textos com erros. Mas foi uma questão de tempo até isso ser corrigido. E o que começou como uma brincadeira, tornou-se uma epidemia séria. Poucos conseguem distinguir como eu o que é verdadeiro ou não. Acreditam em tudo, ou pior ainda, em nada. Ninguém sabe o que vai acontecer quando a distinção já não for possível. Escrevo isto e percebo que não faltará muito para que seja também ignorado, porque julgado falso. Volto atrás e altero algumas coisas, deixo erros propositados, espero que subtis o suficiente para que se possa perceber que foram obra de alguém, e não programados. Lá fora há um alerta de ciclone... do andar de cima, ouço o idiota do vizinho a gritar de satisfação. Há sempre os sortudos...

Monday, October 04, 2004

Sunday, October 03, 2004

in der Unterwelt

"Through the weightless throng, and the ghosts that had received proper burial, he came to Persephone, and the lord of the shadows, he who rules the joyless kingdom. Then striking the lyre-strings to accompany his words, he sang..."
[Ovídeo, Metamorphosis, livro X:1-85, Orpheus e Eurydice]


Entro sozinho. Não são muitas e não as distingo a todas, no meio do fumo e da pouca luz, mas sei que não conheço nenhuma daquelas personagens. Tanto me faz, ainda é cedo. Encosto-me a um canto, bebo calmamente a minha cerveja. Debaixo da bola de espelhos dança uma rapariga de olhos fechados, é-lhe indiferente que seja a única a estar ali. Não se vai afastar daquele sítio, dança como se estivesse rodeada de pessoas que não estão lá. Ainda. Ao meu lado, sentados debaixo do cartaz dos Xutos, dois vultos olham distraidamente para o casal sentado ao balcão. Ele bebe vodka, ela tira discretamente um cigarro e fica à espera, olha agora para as mãos dele. Afasto-me para o lado para deixar passar um dos que têm a t-shirt negra que diz staff, veio buscar umas garrafas ali abandonadas. Atrás dele aparece a rapariga que estava ao balcão, irritada com o cigarro que não foi aceso. Passa ao lado da cabine do dj, vai voltar pouco depois. Um dos vultos no sofá abana a cabeça, o outro sorri. Já conhecem os dois aquela história...

Aquele, portanto, só pode ser Hades. Gordo, rodeado de aparelhos de ginástica e halteres. O inferno, nesta versão da ópera de Offenbach, é um health club. Cantam em italiano, mas nem a italiana ao meu lado percebe o que dizem, julga que ouve francês. As legendas que são projectadas por cima do palco também não me servem de nada, estão em alemão. Tal como o guia que me deram à entrada da Opernhaus, em Mannheim. Tanto faz. "Orpheus in der Unterwelt". Orfeu e Eurídice. Já conheço a história...

"- Tou?
- Onde é que tu estás pá?
- Tóquio. Vim logo para aqui.
- Eh pá, nós viemos para o Mahjong. Como é que isso está?
- Quase vazio. Bom som, mas vazio.
- Eh pá, vem cá ter! Mas o que é que tens estado aí a fazer?"

"- Did you like it?
- Uhmm, yeah.
- Even if you didn't understand the language?
- Well, I knew the story, more or less. So I was inventing the dialogs and trying to make sense of it all.
- And did it work?
- No. There was always something happening that would destroy my story. That didn't make sense.
- But you still liked it.
- Well, yeah. Because then I had to find another story. I had to imagine everything. It's like a puzzle, you see..."